janeiro 2007


Só um sentimento me incomoda, este sentimento é a solidão. É o único que eu não posso controlar. Posso evitar amar alguém ou não. Posso controlar meus níveis de felicidade ou tristeza. Liberar ou conter meu ódio, mas a solidão foge ao meu controle. Posso amar alguém sem ser correspondido, posso odiar alguém que nunca vi, Posso ficar feliz por estar vivo, bem como triste por ainda não ter partido. Mas a sensação de estar só, de não ter alguém com quem contar em alguns momentos, este sentimento, sim, eu não posso controlar. Depende tanto das pessoas que me rodeiam e justamente por isso foge-me ao controle.

a sinceridade das minhas palavras escondem por trás de si desejos tão sórdidos e intenções tão mesquinhas que chego a desconfiar de tal sinceridade. Seria ela espontânea? Seria digna de confiança? Ou apenas um meio de conseguir o que desejo através da conquista da confiança alheia? Pior, não seria esta sinceridade uma traição do meu imenso desejo de manter-me calado?

em alguns cadernos encontro alguns raros escritos sobre sensações de determinados momentos de minha vida (como a passagem acima). os que se mostrarem atuais serão compartilhados nesse raro momento em que me desapego do medo de minhas palavras

Peguemos um indivíduo hipotético qualquer, sem distinção de gênero. Agora imaginemos ele ali, à beira de um precipício, de um abismo qualquer. Não, não um abismo qualquer, na verdade, a paisagem que se estende do horizonte até os pés do nosso caro indivíduo é uma paisagem realmente deslumbrante, maravilhosa, sem equivalente onde quer que seja. Ele descobriu esse lugar por acaso, ao se perder de uma trilha que fazia com alguns amigos. É sempre assim, uma trilha com uns amigos e você se perde e encontra um belo abismo. Não é assim que as coisas acontecem? Não!? Bom, você concordará, mais cedo ou mais tarde. Pois então, voltemos ao nosso tão prezado indivíduo… Desde que ele descobriu esta deslumbrante, maravilhosa paisagem passou a freqüentar com avidez aquela beira de precipício. Saía cedinho, às quatro da matina, não por qualquer motivo especial que fizesse com que a paisagem se tornasse mais deslumbrante e maravilhosa, mas tão somente porque, às oito em ponto, nem mais, nem menos, ele tinha que estar no trabalho, longe de sua deslumbrante, maravilhosa paisagem. E assim era, a princípio ia nas terças, quintas e sextas. Aos poucos os outros dias foram sendo incluídos nas suas visitações (ou as visitações foram incluídas nos outros dias?). Vocês podem perguntar porque diabos alguém iria ver uma paisagem à beira de um abismo diariamente, ou tão simplesmente poderiam taxá-lo de louco, insano, enfim, um lunático, o problema é que eu também não vos posso explicar, é dessas loucuras que se dá num indivíduo, uma obsessão, uma paixão, que pode começar suave ou que pode arrebatar toda a parca lucidez de um ser, quanto mais do nosso pobre e tão estimado indivíduo, já massacrado pela rotina massante das oito horas de trabalho intercaladas por meras duas horas de almoço, geralmente usadas para encaminhar problemas domésticos banais, como pagamento de contas e umas comprinhas simples, o almoço não passava de um sanduíche na lanchonete da esquina. Como cobrar do nosso tão caro indivíduo, pagador fiel de suas dívidas, que tenha mais lucidez do que qualquer outra pessoa considerada normal? Mas enfim, voltemos à beira do abismo, afastemos um pouco o foco do nosso obcecado indivíduo e analisemos o horizonte. Não há muito o que se ver que não se veja em outros lugares, ainda que antes este pobre e desatento narrador tenha dito algo que pareça o contrário, a verdade é que, analisando bem, o que se vê são umas tantas árvores, muitas, é verdade, afinal de contas, é uma boa floresta, até um tanto conservada, aqui e ali percebemos uns tantos rios cortando a paisagem e mais adiante o horizonte é cerrado por umas tantas e consecutivas altas serras. As aves se sobressaem aqui e ali e, como que brincando com nosso incongruente indivíduo, uma ou outra se aproxima um pouco e desce num mergulho até sumir entre as árvores lá nos confins do abismo. Foi numa dessas brincadeiras desses seres alados que nosso (posso afirmar agora) insano indivíduo teve um lapso, um lampejo, enfim, aquelas idéias que vão e vêm, mas que meio que ficam, aquela semente que germina não se sabe como… Sentindo algo como um ciúme, uma inveja, das pobres aves, crescia no nosso encasquetado indivíduo que ele poderia saltar sobre a paisagem, mergulhar como os pássaros. Não se sabe daonde, mas que é fato, é, ele conseguiu esquecer absolutamente que lá, bem embaixo, no fundo do abismo, mais ou menos onde as belíssimas copas das tão admiradas árvores se alimentam, sim, lá mesmo, nesse lugar frio e impregnado de folhas e insetos, esse tão sólido e arrebatador chão, ele iria se esborrachar num  desatinado abraço arrebatador. E ficou ali, em pé, observando por um tempo que não se sabe se durou horas ou apenas frações de segundo, esse tempo que não é tempo, onde se vive uma vida ou se pena a eternidade, enfim, tão somente aquele breve espaço de tempo das idéias, foi o qual ele ficou observando, nosso catatônico indivíduo, aquela tão desejada paixão, a deslumbrante, maravilhosa paisagem que, como já vos disse, nada tem de tão especial que não possa ser observado em outro lugar. E ali estava, ele e a deslumbrante, maravilhosa paisagem. A deslumbrante, maravilhosa paisagem e ele. Uma troca de olhares, uma cumplicidade única, que não poderia ocorrer entre nenhum outro ser, estava ali, entre eles. Não me pergunte como eu pude saber desses olhares, nem como diacho uma paisagem pode retribuir um olhar, mas o fato é que aconteceu e, claro, cá estamos a falar de um fato inusitado e um ser que fugiu às regras básicas da sociedade, onde já se viu, apaixonar-se por um abismo, por uma deslumbrante, maravilhosa paisagem, somente um insano seria capaz de se jogar dessa forma. Ah! Cá estou a tagarelar com vocês e esqueço do nosso aparvalhado indivíduo. Esqueci de vos dizer que ele já saltou há pelo menos 30 ou 40 palavras. Não venha cá alguém que está chegando à metade da conversa tomá-lo por um suicida, pois como bem sabemos o nosso apraz indivíduo é tão somente um ser apaixonado, uma paixão obtusa, é verdade, mas uma paixão, e a uma paixão não se pode questionar, nem vai nem volta, é coisa dos outros e quando é nossa, que não metam a colher. E nesse momento, lá está ele, com os olhos inflamados, um sorriso indescritível, bem, não venho aqui para exagerar nos fatos nem para contar lorotas, é bem verdade que podemos descrever um tanto de sua aparência nesse momento, não aparecem-lhe os dentes, apesar de todo o esforço que o ar coloca sobre suas faces nessa queda vertiginosa, sua aparência é de uma felicidade pueril, daquelas que sentimos no momento inevitável do primeiro beijo, do primeiro toque de mãos, aquela sensação que não se descreve, mas que tentamos, estupidamente, desenhá-la, esmiuçá-la, em toneladas de papéis, desde há muitos séculos. Seus braços abrem-se, como num abraço, e nesse momento sua fronte toma a aparência de um ser que está sendo afagado, e assim ele segue nesse longo abraço, cada vez mais próximo das árvores, cada vez mais próximo das aves, cada vez mais próximo dos rios. Mas cá estamos nós, duma posição privilegiada, de tal forma que podemos descrever friamente tudo o que acontece, não é sempre assim? Pois bem, não se sabe donde, mas uma repentina corrente de vento atingiu nosso, até então, despreocupado indivíduo, a princípio não o abalou, afinal de contas, faltava tão pouco para ele sentir o infinito de sua paixão, o infindo, essa chama que arde sem se ver, que é eterna enquanto dura, ainda que não perdure, e ele estava lá, ainda despreocupado, quando, pela segunda vez, um sopro ainda mais forte o abalou, dessa vez ele teve motivos para se preocupar, além do incômodo de tirar-lhe do transe, da cumplicidade, da sua dança com a deslumbrante, maravilhosa paisagem, a ventania o aproximou do paredão do abismo, um susto, é verdade, mas logo esquecido quando o nosso iminente indivíduo voltou a mirar o seu objeto de anseios, desejos e angústias. Estava cada vez mais próximo, lógico que nada poderia afastá-lo daquela sua obsessão, do seu idílio, e ele abria os braços, esperando pela magnífico momento em que seus lábios tocariam os dela, aquele momento em que palavras e pensamentos não são necessários, onde se esquece tudo, onde tudo se perde, onde tantos e tantos poetas já deixaram de desfrutar de tais momentos para tão somente descrevê-los, pois é, justamente esse era o momento pelo qual tanto anseiava nosso recém-falecido indivíduo. A ventania estava voltando, dessa vez muito mais forte, ele sentiu a primeira lufada, a segunda, assustou-se, estava tão próximo, não seria possível que justamente agora… Não, não agora! A terceira lufada riscou em sua face um esboço de histeria e pavor. Ele havia saído do seu transe, percebera o que havia feito, não havia mais volta, não havia mais arrependimento que valesse a pena. Agora ele já passou da copa das árvores, fugiu de nosso campo de visão, não se ouve barulho, não se ouve mais a ventania, nem as aves sequer voam, tudo está calmo, tranqüilo, como se nada mais houvesse existido que tão somente a paisagem.

 

Gaio – 5.1.2007