havia um retrato na sala que quem era ninguém mais lembrava. o avô não mais falava. a avó não mais estava. a filha mais velha não perguntava. o irmão mais novo não se importava. o neto ainda engatinhava. e a cor já desbotava.

de vão em vão
os pensamentos se dissolvem
o que esperar de dias mornos?

lá fora é alvoroço
as balas rasgam o ar,
peitos e sonhos

do ar o sibilo, dos peitos o sangue,
dos sonhos a esperança

conduzo meus pensamentos
entre estradas ermas de árvores por florescer

– mas as flores nunca desabrocham –

me fecho em outonos fora da estação
invólucro-fruto,
amadureço, agridoce,
enquanto guardo sementes do amanhã

o silêncio é inquietante
angustiante

mas cada som fere os ouvidos
e reverbera pelo espaço sem paredes

é absurda a comunicação
do silêncio que nos cala

e do sorriso displicente
fez-se o suspiro
dos lábios jambo
o desejo
dos olhos castanhos
a paixão

e justificou a breguice
dos versos ao léu:
– se emudeço, padeço

para a vida,
aquilo que respira
não há opção
senão viver

da morte
trago único e último
nem retrato, nem poesia
é um ponto final

fora do papel

O olhar recaía moroso sobre o horizonte. Devagar acompanhava o naufrágio diário da vida. Aproximadamente setenta e duas vezes trezentos e sessenta e cinco naufrágios diários se passaram desde o primeiro dia. Os motores, as velas, não mais funcionavam a contento. Estava à deriva. E a carcaça, desgastada, não aguentaria uma nova tempestade. Talvez nem mesmo sequer o próprio sal da vida. Recaíam, sobre si, olhares morosos daqueles que seguiam nos botes salva-vidas. Não lamentava. Havia visto muitos naufrágios. De rompante. Ou lentamente. Todo capitão afundava, naufragava, com sua velha carcaça, seu velho navio. Alguns em botes, protonavios frágeis demais para compreender a natureza avassaladora do mar. Fitava bem o horizonte. As tão várias cores que pintavam aquela tarde, eram tão iguais, tão tediosas, que não lamentava o porvir. A calmaria talvez fosse o pior. Uma ironia com a vida que levara, tão cheia de tempestades e ventos fortes. Agora, apenas uma eternidade de segundos que não acabava. A morosidade do entardecer. Eterno. Enquanto afundava.

Qual o caminho a seguir?
Já tanto há dito sobre isso
E nada há dito
não há caminho
Não há verdade
Não há nada que leve
à felicidade ou à tristeza
E tantas vozes gritam
por deuses, por verdades,
por negações, por amores
Há tanto… E tanto, tanto
Tanta gente, tantas vozes
Tantas letras, tantas imagens…
Vivemos na era das imagens
Fotografias
“Recortadas de jornais de folhas
amiúde”
É a era das imagens
Fotografias, gravuras, lápis que perpassam
folhas a perder de vista
É um vazio enorme a preencher
Não sei…
O que preenchemos? O vazio?
Ou o vazio nos preenche?
Quem envolve quem?
Tanto desespero
De lá e de cá
Dos com e dos sem
Desespero de quem tem?
Desespero de quem quer ter?
Chegamos num ponto comum?
Não sei para onde ir
Do lado de lá, alguém compra
uma passagem
Para viver, para passar,
daqui 500 milhas
daqui para o nada
A saudade vai perdurar
Desse pedaço de cá
Desse pedaço?
Não, talvez não
A saudade vai perdurar?
Ou a tristeza, a impotência,
de não ter conseguido mudar?

olhe os sinais na estrada. todos eles dizem ‘siga em frente’. siga. em. frente. olhe os sinais, renato, olhe os sinais. não perca a entrada. será à esquerda? será à direita? na primeira, na segunda, na terceira entrada? renato, tanto que te digo, cara, olhe os sinais na estrada. e você, você, sempre, sempre, com a cara pro nada. lembro, agora, de um dia, na faculdade, insistia em irmos embora, mas você defendia o tempo, seu amigo, seu parceiro. insistia, repetindo, ladrando versos, que o tempo era seu companheiro. não sei, renato, não lembro, quando viramos a página, e você seguiu livro novo, nova narrativa, verso solto, poesia de vagamundo. ou esse era nosso livro, e eu que caí pela borda, chão pesado, palavra pétrea, em concreto sufocado. olha, renato, onde estás indo, os sinais da estrada, os sinais, renato, todos eles dizem ‘siga em frente’. armadilha do tempo, renato? teu companheiro cegando teus passos? renato, presta atenção, renato, à esquerda, você deve entrar à esquerda. lembra? a estrada do velho sítio. agora recordo, renato, do dia em que, cabisbaixo, chutava pedras na rua. noite fria, rara nessa cidade tão quente. você correu até mim. era um dia difícil. conversamos por longo tempo. um ano sem contato. você não tinha mudado. ou talvez, teu companheiro, tempo, tenha me roubado uns longos anos, e entregue em tuas mãos. renato, vê, está escurecendo, e os sinais na estrada começam a refletir os faróis. ‘siga em frente’, ‘siga em frente’. renato, o percurso é longo. você lembra? mas quantas horas já dura esta viagem? é noite, renato. a entrada não tem iluminação, não tem sinalização. uma velha entrada à esquerda, coberta de mato, com uma jaqueira ao lado. quantos anos, renato? renato… é noite. escureceu. está frio. teus amigos te esperam, renato. mas você não retorna. deu braços ao tempo. ao teu tempo. e esse é um caminho sem volta. siga em frente.

no mundo
desmundo
sem rumo
desaprumo
volateio
no delírio
desassossego